Eucaristia e Liturgia
Autor: Marcio Antonio Campos
Extraído de: http://www.veritatis.com.br/article/4047
Publicação original: Novembro de 2006
Extraído de: http://www.veritatis.com.br/article/4047
Publicação original: Novembro de 2006
É quase
automático: quando se fala na Missa celebrada no rito tridentino, anterior à
reforma litúrgica de 1969, as duas primeiras ideias que vêm à cabeça da maioria
das pessoas é "missa em latim" e "padre de costas para o
povo" – normalmente essas ideias são seguidas de algum gesto ou expressão
de repúdio, como se rezar em latim e vendo só as costas do padre fosse
praticamente o inferno na terra.
Em seu livro
"Introdução ao Espírito da Liturgia", o então cardeal Joseph
Ratzinger dedicou um capítulo inteiro para explicar por que a expressão
"de costas para o povo" é inadequada quando se fala da orientação do
sacerdote no rito tridentino (lembrando que essa possibilidade se manteve no
rito de Paulo VI, embora na maioria das vezes o padre celebre voltado para o
povo). O texto é uma aula de história e de teologia, e por isso apresentamos um
breve resumo, organizado em tópicos. A versão usada é a publicada em inglês
pela editora Ignatius Press (The Spirit of the Liturgy, p. 74-84).
1. O cardeal
começa dizendo que rezar voltado para o oriente tem sido a tradição cristã
desde o começo do Cristianismo, mas o homem moderno perdeu um pouco o sentido
dessa orientação (aliás, a própria palavra "orientação" vem de
"oriente"). No mundo ocidental, o conceito de que Deus está em todo
lugar levou a um questionamento da necessidade de se estar voltado a um
determinado lugar ou direção. No fundo, os católicos acabaram adotando o
"tanto faz" litúrgico, enquanto judeus e muçulmanos continuam virados
para o ponto central da Revelação, o Deus que se revelou a nós.
2. Se é
verdade que Deus está em todo lugar, também é verdade que Ele se fez carne e
esse é um ponto fundamental da fé. Por isso, como cristãos, deveríamos nos
voltar justamente ao Deus encarnado.
3. A
confusão sobre para onde o padre devia se voltar começou quando alguns
liturgistas "muderrrrninhos" resolveram se debruçar sobre a Basílica
de São Pedro, que tinha uma característica diferente das outras igrejas. Por
causa de razões topográficas, ela era (e continua sendo) voltada para o
ocidente, e não para o oriente. Então, se o padre queria celebrar voltado para
o oriente, ele precisava ficar de frente para o povo.
4. A partir
dessa observação, os liturgistas avançadinhos do século 20 disseram que a coisa
tinha era de ser feita desse jeito, que só com padre e povo virados um para o
outro que se formaria a "comunidade celebrante" (e hoje sabemos pela
Ecclesia de Eucharistia que esse conceito é errado), que teríamos
"participação ativa", que reproduziríamos o modelo da Última Ceia,
enfim, que o autêntico sentido da liturgia católica só poderia ser obtido desse
jeito, com a liturgia versus populum (padre e povo frente a frente).
5. Mesmo que
o Concílio Vaticano II não tenha dito nada sobre celebração "versus
populum" (e não disse mesmo), logo depois do Concílio começaram a se
construir igrejas seguindo essa nova corrente litúrgica, o que deu a entender
que isso tinha sido fruto do Concílio (mas não foi). A maior consequência
disso, diz Ratzinger, não foi arquitetônica, mas sim espiritual: a essência da
liturgia passou a ser de "refeição comunal", em vez do sacrifício de
Jesus.
6. no
entanto, existem alguns aspectos que os liturgistas "muderrrrninhos"
esqueceram ou quiseram esquecer:
a. Nunca houve no começo do Cristianismo missa em
que as pessoas ficavam voltadas umas para as outras.
b. Mesmo na Última Ceia, e em outras refeições
daquela época, o anfitrião não ficava de frente para os convidados. Eles
ficavam todos de um lado da mesa enquanto o outro lado era deixado para o
serviço. A característica "comunal" das refeições vinha justamente do
fato de que estavam todos do mesmo lado da mesa!
c. Apesar da Eucaristia ter sido instituída durante
uma refeição judaica de Páscoa, os cristãos sempre entenderam que a Eucaristia
se referia à Cruz, mais do que à Ceia.
d. No caso da Basílica de São Pedro, e de outras
igrejas voltadas ao ocidente, quando o padre rezava voltado para o oriente, não
só ele fazia isso: toda a assembleia também se voltava para a mesma direção. Ou
seja, era o povo que "dava as costas" para o padre, e até para o
altar.
7.
Justamente porque todos esses fatos caíram no esquecimento é que surgiram
expressões como "celebrar virado para a parede" e "de costas
para o povo", e o versus Deum se tornou algo praticamente inaceitável para
os liturgistas "muderrrrnos".
8.
Curiosamente, diz Ratzinger, uma consequência dessa nova maneira de celebrar
foi uma clericalização: o padre (ou "presidente da celebração", como
gostam de dizer, para desgosto de muitos católicos) vira o ponto central e a
referência da liturgia: tudo depende dele, temos de vê-lo, responder a ele,
depender da sua criatividade. Só que, para compensar, os liturgistas
"muderrrnos" resolveram entupir o presbitério de leigos para criar
"participação ativa". Em duas frases traduzidas literalmente do
livro: "Cada vez mais Deus sai de cena", e "Com o padre voltado
para o povo, a comunidade virou um círculo fechado em si mesma".
9. E aí o
cardeal explica por que dizer "de costas para o povo" é uma expressão
inadequada. Celebrar versus Deum não quer dizer que estamos voltados para a
parede, ou que o padre dá as costas ao povo. Nem padre nem povo deviam ser tão
importantes a esse ponto de ser referência de alguma coisa. Quando padre e povo
estão voltados para a mesma direção, eles sabem que estão em uma procissão
dirigindo-se para Deus, diz Ratzinger. Eles não ficam se fechando em um
círculo, não ficam olhando um para o outro, mas sim se tornam o Povo de Deus
peregrino que se dirige ao oriente, de onde vem a Luz.
10. No
entanto, observa o cardeal, não é possível simplesmente clonar o passado. Cada
época precisa descobrir a essência da liturgia (que não muda) de acordo com sua
maneira. Por exemplo, a liturgia da Palavra, sim, tem a ver com falar e
responder, e aí um cara-a-cara entre leitor e povo faz sentido. Mas na liturgia
eucarística é essencial (essa palavra é do cardeal Ratzinger) uma orientação
comum em direção ao oriente. Olhar o padre não interessa. O que interessa é
olhar para Deus.
11. Das
objeções a esses argumentos todos, talvez a mais importante seja de ordem
prática: vamos ter que rearrumar as igrejas outra vez? Ratzinger admite que
ficar mudando tudo de lugar não é bom, mas encontra alternativas. Onde não for
possível que padre e povo se voltem para a mesma direção (eu particularmente
acho que esses casos seriam exceções bem raras, já que quase sempre existe um
bom espaço na frente do altar), seria possível criar um "Oriente
interior", da fé – por meio do crucifixo, que deveria estar bem no meio do
altar e ser o foco das atenções do padre e do povo (pergunto, em quantas
igrejas vemos isso hoje?).
12. Ah, mas
hoje existem aqueles crucifixos de procissão, que ficam lá do lado do altar,
alguém poderia dizer. Então Ratzinger responde, e com esta citação finalizo o
artigo: "mover a cruz do altar para a lateral para dar ao povo uma visão
do padre sem interferência é algo que eu classifico como um dos grandes absurdos
das últimas décadas. A cruz atrapalha a missa? O padre é mais importante que o
Senhor? Esse erro deve ser corrigido o quanto antes, e pode ser feito sem
necessidade de reformas. O Senhor é o ponto de referência."
Nota do
editor (site “Veritatis Splendor”): A reforma
litúrgica de Paulo VI não mudou a posição do sacerdote durante a Missa. Há,
isso sim, uma permissão para celebrar o Santo Sacrifício versus populum,
mantendo-se, entretanto, a posição versus Deum como normativa. Das próprias
rubricas do Missal Romano de Paulo VI encontramos as informações que abonam
essa prática: o padre deve, segundo tais textos, durante a Liturgia
Eucarística, "voltar-se para o povo" para algumas cerimônias e atos;
isto significa que, se deve voltar-se ao povo, é porque antes estava voltado ad
Orientem. "Estes avisos que em certos momentos o sacerdote esteja `voltado
para o povo' seriam supérfluos, se o sacerdote durante toda a celebração
ficasse atrás do altar e frente ao povo." (RUDROFF, Pe. Francisco. Santa Missa,
Mistério de nossa Fé. 1996, Serviço de Animação Eucarística Mariana, Anápolis,
com apresentação de Dom Manoel Pestana Filho, Bispo Diocesano de Anápolis, p.
110, nota 37; cf. ELLIOTT, Mons. Peter. Cerimonies of the Modern Roman Rite,
1995, Ignatius Press, San Francisco, p. 23) Publicada em 1993, no seu boletim
Notitiae, uma nota da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos reafirma a licitude tanto da celebração versus populum quanto da
versus Deum. Assim, mesmo no chamado "rito novo", é perfeitamente
possível a Missa "de costas".
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